As carrinhas beges de porta corrida estão sempre abertas, dentro cravos, rosas brancas, vermelhas, malmequeres, flor do linho, verduras de emplastro, lentisco, magnólias , fita de laços e, sobretudo, os cravos vermelhos luzem na sombra dos tectos gradeados, molhadas hastes na água, o pé no plástico preto, desprende a haste.
É Primavera ,e se não fosse pouco mudaria, talvez um panamá, um plástico de atilho com estrelas brancas, um chapéu de chuva azulão bem aberto que cobrisse cliente e vendedor, abrigasse negócio, a palavra regateada, o dinheiro trocado, a flor mal escolhida, o desagrado da cliente, logo uma mudança rápida por outra que condissesse mais com a dor ou com a libertação do peso ou acidente duradouro.
Uma anedota depois por detrás das costas, um gracejo, um esgar... O negócio tinha sido lacrado.
Quase ninguém vem, elas sabem que o negócio não vai fartar, dão-se às linhas, às rendas infinitas que se avolumam nos sacos de supermercado e dia-a-dia pesam , dão-nas a jovens mais desfiguradas pela droga ou a lares, são o testemunho das esperas contadas pelas mortes vindas, pelo sentimento de perda mal chorado num espaço, onde só o coveiro assobia como um pássaro que pousou no cipreste e teima em ficar aquela noite sem que haja provavelmente outro pouso, outra luz, ou uma semi - escuridão lunar...
As prendas ficam sempre na carrinha persistem em não as levar portas adentro de casa .
Ouvem muita música, sonham muito, orientam-se pelos telemóveis, é só picar números, descer sons musicais ou ruídos, marcam encontros e comparecem, vão pela gula dos sentidos, orientam a casa, como senhoras lembram a comida nos taparués no congelador às mulheres a dias, têm filhas mestres, doutoras, e filhos engenheiros, empregados de balcão do turismo , chefes de informática, e emprego municipal .
Estão ali, não suportariam estar em casa como as mães, nunca votam dá -lhes calafrios e a bota está sempre pronta com a perdigota.
O coveiro abre a cova a golpe de enxada e mais golpe, encontra osso e grita às mulheres que bom é não estar morto.... elas acodem com riso, levantam-se das cadeiras de lona ou dos assentos das carrinhas e unem-se, deixam de lado por momentos os acordos dos negócios ou a peste de uma outra de lado, esquecem-se das traições das escolhas dos clientes ditadas flor a flor e vêm rir às portas do cemitério. Pedem lume, umas às outras, exibindo algumas delas os cigarros caros nos sobrebolsos dos aventais... E o coveiro grita de novo e só afugenta o réptil que passeia na laje ou as abelhas que surgidas do nada desabrocham das flores viçosas e zoam abertas pelos ares.
O ar é fresco , o céu é limpo, há luzes eléctricas a florescer no brilho das pedras das sepulturas e os melros param a ensaiar um canto, uma busca de uma rota de asas , um caminho de saltito em saltito, por dentro dos talhões, das áleas , dos santos das moradas , dos jazigos .
Os jazigos estão fechados. Uma mulher cigana está sentada cá fora e tem enormes fotografias de uma filha bonita, morta numa ronda de droga, diz a quem passa, comprei tudo isto a uma família que cá já não tem nada de seu, só uma placa que dá para o talho, um médico. Não abandona a ladainha, chora a sua própria morte.
O coveiro grita de novo, são abandonadas as rendas do ensimesmamento nos assentos e as flores no escuro procuram brilho para morrer, agora só algumas delas com a música bem alta do amor sórdido e sucateiro... .
Há sempre uma comparsa num dia que combina o preço e não o desfaz , partilha o mesmo sonho do amante que lhe deu pancada e fez juras que elas nem escutaram, mas vivem da distância de uma conversa, de um carinho todo feito de cama, combinado, assim mesmo ao telemóvel que trazem nos seios altos rasgados no triângulo dos vestidos .
Estas combinam a partir daí a vida doméstica, a sopa, os horários dos ateliês dos filhos e das velhas que os vão buscar para almejar um beijo, a possibilidade de fazer uma festa no cabelo, recomendar o rogar a deus ... elas também como as outras indicam os taparués no frigorífico, dão ordens à mulher a dias , são verdadeiras tiranas, como se fossem rainhas libertas do vinco das calças do marido, das camisas. Os filhos andam de qualquer jeito, foram cuidados quanto baste, falta-lhes a elas em geral a última disputa, a escolha da namorada certa, porque até aí já que os pais não se ajeitam,dão-lhes elas os primeiros preservativos e o conselho de que a morte é certa ,como um e um somarem dois ou três , e não há dinheiro para abortos decentes.
As flores dos mortos andam dentro deste movimento, assentam valor neste contrato, na venda de cada flor que dá o magro pão, o perfume ao amante a que foi dado a cheirar no papelinho da grande superfície, a camisa nova dada ao marido, uma surpresa desvalorizada, num instante.
Aos sábados vestem–se como rainhas de novelas, e delas são encantadas por músicas do principio ao fim , roem as unhas do verniz de domingo, regulam o colesterol dos maridos, contam os cigarros, sentam-se nos sofás gostam do futebol deles e compreendem também as jogadas.
Nada se desperdiça, condoem-se com a dor alheia, proclamam que é sempre melhor assim, agora uma viagem, uns dias folgados, uma praia, um passeio na mata, umas missas, e umas mãos mais abertas no descanso das manhãs e nas noites passadas sempre de alerta : vai ver que vai rejuvenescer.
Quando aparece alguma com o luxo do preto e do ouro, já cheia de flores, assobiam como o coveiro , riem-se dela como se um amante não andasse perto e não o escondesse por onde elas se festejam à noite, dando luz ao corpo nos bailes em grandes nos salões .
O ruído clássico do telemóvel, conversas criptadas que só algumas conhecem. Não é cumplicidade é devassa
A velha que vem limpar algumas campas traz unhas pintadas, mas não como as delas, invejam-na, comparam–se mãos pedem que lhe as mostre antes de deixar os baldes pretos, os esfregões , as lixívias e os sabões das campas num canto, até ao dia seguinte. Dão-lhe às vezes boleia , outras deixam-na partir no último autocarro diário, e a velha parte com conversa picante com o condutor que ouve jazz e usa rabo de cavalo, um empenho da namorada que o penteia em público nas esplanadas.
Na vila tudo se sabe, e a rapariga sabe bem disso, aprendeu. Está ali junto do condutor ainda cheira a detergentes, tira um anedotário velho das algibeiras serve-o às colheradas ao rapaz, ri-se sem qualquer jeito, a ele provavelmente aquilo nada lhe diz, ela insiste, o autocarro segue pela estrada, despede-se dizendo à saída: diga às putas como são os coirões.
O autocarro continua, o rapaz nem ouviu tudo, e a velha parte com a convicção de que conhece este mundo e a lua ... .
JRM
5 comentários:
Finalmente encontrei. Vou ler com atenção, degustar esta receita virtual e logo comentarei.
Cumprimentos
Azul ao longe
" orientam-se pelos telemóveis, é só picar números, descer sons musicais ou ruídos, marcam encontros e comparecem, vão pela gula dos sentidos (...) "
_______
notável !
iv*
Depois de uma leitura tenho necessidade de o reler...
Um "saludo"
de tudo um pouco
um pouco de tudo
um tudo nada
mesmo no fim
na última paragem
da vida
tudo se esgrima
na conversa
nos actos
nos desalinhos
nas comadres
de tudo um pouco
um pouco de tudo
o nada
nem o telemóvel
se negoceia com a morte
.fico com um gosto amargo
prenúncio
de fim de vida
ou início de morte?
.tanto faz
.
um beijo
Li e reli e senti que está bem atento ao mundo que o rodeia. São palavras tristes. Se eu as mastigasse, certamente sentia um sabor acre na minha boca, mas acredite que gostei. Vou voltar mais vezes. Escreva, escreva cravos, escreva rosas, escreva espinhos mas escreva sempre. Gostei.
Anad
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