Profano o espaço. que será. seja. um caminho. vereda de memórias.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Uma carta a Maria Ana


Nunca consideraste durante muito tempo que o meu amor por ti fosse verdadeiro, exasperavas só porque o meu tenente ia buscar as tuas cartas, como se não levasse as minhas, essas a que pouco aludes que passavam primeiro pelas mãos de D. Brites, depois pelos seus seios de onde as retirava para as ler às escondidas, presa ao meu desejo acarinhava-te os dias, seguramente passando noites em claro junto à porta dos teus aposentos ouvindo de corpo aberto e vontade indomável de te pertencer. Quase todas as noites te sobressaltavas, levantavas-te imediatamente, como se o meu regimento me viesse procurar, sentia-te o corpo oprimido, as costas tensas embora levantadas, o cabelo louro caído, as coxas trémulas no lençol, os olhos brilhavam sob a luz fosca da candeia, punha-me ao teu lado, os pés firmes na suarda , mas o vento soprado já era só um fôlego sumido no palratório há muito que ninguém assistia ninguém.... Só aquele som muito chão , um canto antiquíssimo arrojado vibrando a corda de muitas vozes em uníssono. No quarto quente, as tuas palavras ainda as lembro.
«Tenho relâmpagos no peito quando vens, tenho relâmpagos no peito quando não vens ou quando prometes vinda nas tuas breves missivas ou sinais, torço a carne em orações , vibro na mais estrita devoção de me cumprir nas tuas mãos de te dar a minha carne à boca de me ver arder na fé pública sabedora do desejo infame, escondido e acossado, contrariando alianças, jogando a glória de territórios no préstimo dos vossos serviços, protegendo, restaurando, salvando-me da minha fogueira , a mais áspera à minha condição».

Sendo madre fiquei soror, sendo Maria Ana , deixar-me-ão nos séculos como Mariana. Também te acorria a glória, também te sentias perseguida pela história, uma e outra cruzando-se numa disputa triste e déspota de um rei-Estado que nem assim se queria.
Ouvíamos os cães lá fora, o vento trazia o uivo até ao nosso recolhimento, tu punhas as mãos na minha boca, eu quase ouvia o sono solto das noviças, pressentia-as à tua porta com candeias à altura do nariz, como quando havia muito vento por entre casas ou briga guerrilhenta nas linhas de fronteiras, e todos ditavam orações nos casebres ao louvor à lua e ao Rei . As noviças, umas atrás das outras, rendiam guarda de ouvido a ouvido à porta de teus aposentos à beira do nosso abismo, sei que algumas delas me queriam com brandura de afago, D. Brites insinuava quase abertamente quando as guardava nos seios, contava-me o meu tenente, eu escondia ou esquecia, mas rendi-me sempre à implosão dos teus olhos, a essa espada mais forte do que todas as armas que me licenciaram para este destacamento involuntário; eu tinha o apreço e aplauso de outras damas o tom solene da conversação, a fala breve que consentia a escuta. No entanto, o fogo morno do interesse, a atracção complacente, quase desinteressada era teatro vão . O interesse era sempre pela mesma pele de guerra surrada a fogo de juramento anunciado. Duvidavas, voavas, desinteressavaste-te, insistias que não sabias nunca notícias minhas , sujeitavas-me à impiedade, abjuravas, apontavas-me desmerecimentos, acusavas-me de falsidade, de penhora de honra, regateavas com o meu tenente idas e vindas rápidas ... Nunca soubeste que D. Brites, impostora, disfarçava, recebia as minhas cartas guardava-as no peito entrouxado de tantas outras, disse-me mais tarde o meu tenente que se punha em arte de fuga acostumada sob suas ordens aflitas, curiosas, e de bençãos latido dos cães.


Eu sabia, ouvia-se ao longe crescia-me nos ouvido, como se houvesse emboscada ou disso dessem sinal, o ataque do inimigo estivesse perto numa faúlha incendiando as searas, matando o gado, roubando rações, comendo pão ázimo sempre a desfrutar das mulheres sob o olhar apiedado das crianças e o diabolismo dos homens que acabavam por matá-las. Se agora te conto isto, foi por que nem somente me crias quando te dizia que passava horas desesperadas por te dar a conhecer este amor desafortunado que implodiu quando subia ao Monte de Mértola para avistar linhas de defesa e de ataque e os teus olhos me seguiam para sempre com a precisão de um raio sob um corpo já adormecido pela lonjura e demora de uma guerra que não escolhi, mas que me trouxe a batalha mais cruel, por não me dares ouvidos quando em desatino de confidência procurava saber de uma carta muito antes de outra tua. Sempre te guardei em segredo quanto mais encontrava o teu halo mais o corpo pedia que resistisse até que eu pudesse partir no sopro do meu cavalo. O meu tenente pernoitava por perto, o meu cavalo relinchava na minha ausência, embora soubesse ao que estava ia e vinha, era preciso acarinhá-lo com festas no barbado quando de madrugada já passava o gado ao longe, pressentia-se o medo dos pastores e as campainhas das ovelhas já não pingavam sinos. Sempre te escrevi, nunca pude deixar de o fazer, embora Sua Majestade, o Rei, a mim, me impusesse as mais restritas obrigações, me louvasse no mais estrito segredo junto dos generais, padecendo a injúria de minha família, o desprezo de familiares afastados, rondando o rendimento também da minha glória. Embora subestimasse, eu mergulhava na glória de tudo alcançar injuriava-me às vezes silenciosamente , vendo os que estavam perto, os que a troco de parco préstimo se queriam elevados a condecorações e já se viam a retornar a novos ou outros campos, onde a glória os viessem festejar com acometimentos vis as velhas populações vivendo com o nariz e os olhos nas terras que mal davam para saldar obrigações. Eu estava certo e mal podia falar-te das minhas inquietações, era o meu tenente que te levava as cartas, embora houvesse algum entendimento mútuo era mal olhado, desconsiderado, havia sempre sempre outros que me deviam obrigações. Não podia alardear muito por considerar impróprio e por saber que as cartas te chegavam lidas ou não, dadas as tuas queixas sem fim, entre o certo e presumido desgosto em que te consumias. Sim, os teus olhos verdes mergulharam fundo e guerrearam com os meus sentidos mal te vi de rápida passagem à janela entregue a contas e demais despachos que obrigavam o convento a formigações silenciosas de raras saídas e muito menos entradas, avistando os montes de Mértola, eu te coroei ao longe quis –te minha , liberta do hábito e das funções que abjuravas e que desde então te entregavam para ser verificado até que ponto cumpririas com pena, obrigação e desejo o que de divino te viesse de carne, osso e pele enterrar-se no teu corpo. Ainda te contarei mais , outras cartas não recebeste, outras coisas são te de ti ditas e nunca por mim escritas . Chamilly
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não. não me digas. não me escrevas. não me des.silencies. rasgado o véu sou outra debaixo da pele. ardida e ardente na cadência do milagre que não é de espigas. antes de divinas rosas de sangue que o sangue arrasta no meu ventre. não me abras o vale. deixa-me ser o fogo. mas aquele que arde ao lado das ancas. lá fora o vento é um punho. cerrado. o mesmo que mordo na penumbra do gesto que me ensinaste. não. mas não me esqueças. faz de mim o teu relâmpago.
___________________._________________________ANA.

7 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

o uivo maior do recolhimento!!!

_____________________.



re.leio. com o nascer do dia.


talvez me nasçam as palavras.


_____________________.

Frioleiras disse...

lindíssimo,

absolutamente................

Frioleiras disse...

soror mariana?

isabel mendes ferreira disse...

boa noite."guardador de
memórias e de palavras e de imagens ,..."



_______________.

a "história é sempre feita desse gostar".

______________.

Gabriela Rocha Martins disse...

um excelento

re encontro

com

as tuas palavras

JM



um beijo

Gabriela Rocha Martins disse...

e
de
hoje
em
diante

estarei
diariamente

Anónimo disse...

e quem tem um leitor como a Gab. tem no mínimo obrigação de publicar publicar publicar...:)

é uma leitora compulsiva...:)


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abraços aos dois.




y.