Digo-te hoje o que os séculos calaram fundo, o tradicional mito da mulher abandonada, apaixonada pelo aliado, o nobre que te combatia o corpo, o forçado chamado ao silêncio de uma hierarquia poderosa e nula, embrulhada em galões de outros palcos, outras guerras. Como tudo se te ofereceu fácil, da iluminura ao traço rápido do teu rosto, sabes que te deram rosto árabe, moreno, envolta em véu negro, gratidão de andorinha de barcos perdidos de conquistas, homens de braços como forcas, vencedores, procuraram-te em iluminuras desejaram-te percursos, desenharam-te a genealogia. Os mais brilhantes, poetas e pintores, o que fizeram de ti? Não posso calar esse escândalo, não me interessa essa história que se desenrolou a contar-te recebida por mim a salto de uma janela, quiseram-te acreditada pela Europa, nessa interdição mesquinha para valia de amigo de guerra e silêncio de inimigo. Eu teria um fogo lá fora, quereria fortuna, fama, tinha-te salvo da fogueira, tinha-te acolhido nos meus braços, como se os teus não existissem.
Como poderia ser assim, se os teus pedidos, as tuas orações de salvação, as devoções do corpo ileso tinham sangue novo à superfície, um fogo velado pelo hábito que a função teimava apagar, percebia-a o bem no rogo das tuas mãos privadas de tacto com as sarditas insinuadas na pele fresca que teimava em não morrer.
Não esqueço, vieram cortar-te o cabelo ruivo que persistia em insinuar-se nas longas preces disseste-me, quase desenganada de outra solução. D.Brites impôs o corte a todas no convento, para só a ti te contemplar e só duas cartas minhas lhe mordiam os seios quentes com as marcas da tinta que lhe via nos dedos, quando me vinha buscar, soberba e altiva com o espartilho desfeito, alta ia a madrugada, o calor da noite não justificava aquelas manchas que ela deixava nas minhas mãos no cumprimento ofuscado da candeia.
As noites eram tugidas de silêncio, de medo e de oração afirmava no desejo mordente de me tocar, sabendo que te pertencia, era esse um sinal que desejava que te entregasse. Encontrei-te descontente com o corte do cabelo que fora enterrado por uma rapariguita rápida que viera de Fontinha, com o soldado português de resguardo a desejá-la caída nas estevas do caminho e sobre ela se festejar como animal atento à oportunidade. Vi-o mais tarde e soube-o em conversa indesejada com o meu tenente que insistia em sobreferrar o seu cavalo. A rapariga não sabia como se lhe contavam os anos e refugiara-se num silêncio trémulo desassossegado de pernas e mãos, quando me aproximei e lhe perguntei os anos para ver se coincidiam com a minha entrada para o inferno que tem sido a minha vida por te encontrar. Lembraste-me que a moça vira o cabelo e gritara, nunca tinha visto aquela cor de barro - disse a custo, embora soubesse que a fala lhe era interdita. Tivera tanto medo que os pentes mal lhe corriam de festas e a tesoura desfazia-se deles, como das crinas de um cavalo. Levou a tarefa a cabo sob ordens confessas, e só tu choraste, não tanto por vê-los enterrados à parte das demais noviças, mas por não poderes desfrutar das minhas mãos que deixava sempre neles um selo de eternidade, sentido nas horas de orações e nas outras horas mais prosaicas da vida.
D. Brites entendera e viera ao teu encontro serena e vingativa para te levar à cozinha, onde a mocita, que mal sabia dizer o seu nome, se refastelava com um bocado de pão serraceno que era costume oferecer-se como esmola a bandidos e pedintes que o rogavam a troco de orações pensadas enquanto engolido, repetidas enquanto aconchegado com água que não era farta no convento. Toda a madrugada te lamentaste num sussurro convulsivo com as minhas mãos apertadas na tua cabeça crispadas na tua nuca, pedindo-me salvação à carne, à febre. Um enterro de prazer, diriam os românticos. Ouvia D.Brites escutando à porta dos teus aposentos no convento, como sempre. Quis dizer-te ao ouvido o som daqueles passos, perguntar-te pelas minhas missivas, mas tu entregue à surpresa desgarrada do meu aparecimento mordias a minha boca, desfazias as minhas palavras, quando os lábios se entreabriam eram sempre para me lembrar o meu desaparecimento, a tua cegueira, o meu desprezo, a minha soberba ... tudo isso te alimentava as horas e de tudo isso te alimentavas. Nunca te pude contar que tantas cartas te enviei e nunca consenti ao meu tenente que o fizesse nem ele se atreveria, embora na obrigação da ronda sob o uivo dos cães, te levasse a fúria da minha febre que no acampamento sobressaltava os homens que davam a guerra por ganha, viam-se mortos nos que tinham matado e vigiavam–me de acordo com funções e cumprindo ordenações ditadas muito antes; alguns deles vingavam-se no abandono e esperavam morrer no dia seguinte ou fugiam. A minha paixão por ti não era um comum raio de tempestade a que nós nos fomos habituando, era uma chuva torrencial que lavava o meu corpo do fogo inglório de te querer e não te ter por perto. Maria Ana, gritava em pleno acampamento, o eco contra os montes já os camponeses aravam terras protegidas e os mais cautos dos soldados convenciam outros a fazê-lo. Deixo-te com esta lembrança, mas voltarei não para fazer do tempo um suspiro, mas cavá-lo com as minhas palavras e a redundância delas e relembrar-te episódios que o tempo cobriu de anjos, não nos azulejos, mas na inscrição das rosas que fazes tuas, e perante elas eu só amachuco duas, e essas duas são sempre minhas. Chamilly
4 comentários:
rosas com raizes...
uf...(odeio posts em branco...sem comentários).
ProntoS.
bom domingo. chuvoso. bom para re.ler "cartas" assim. escritas com lápis permanente.
cordialmente.
.piano.
venho agradecer os comentários. no Piano.
alma e sentido.
intenso dizer de quem lê. o adentro.
abraço.
.piano.
insone.
:)
re.voltei...
(ah...esse...) pois tem toda a razão...:) aquele lugar é falsamente viajado...uma farsa.
mas há tantas não é?
________________________.
agora percebi.
obrigada.
________________________.
curiosa a forma como intui tão facilmente...
deve ser por isso que escreve assim...
e vou.
re.tentar o país dos sonhos.
________________________.
.piano.
Profundo, encantador e mágico. São as palavras que me ocorreram depois de ler esta Carta ao Tempo...
Um abraço
Enviar um comentário